Revista semanal Istoé preparou uma matéria, após ataque terrorista na Nova Zelândia, sobre os trabalhos do Dialogo Interreligioso.
Atividade mensal que CCBT um dos organizadores há 3 anos sob título “Encontros da Família Abraâmica” foi inspiração para essa reportagem.
FOTO: “O judeu Raul, o muçulmano Atilla, a mórmon Ruth e o padre Bizon: cada um com sua fé, mas juntos por um mundo melhor”
Cilene Pereira 22/03/19 – 09h30 – Atualizado em 22/03/19 – 18h58
O riso corre solto entre o cônego José Bizon, o judeu Raul Meyer, o muçulmano Atilla Kus e Ruth Junginger de Andrade, membro da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, conhecida como Igreja Mórmon. É hora da foto que ilustra esta reportagem e o quarteto se diverte enquanto tenta seguir a orientação do fotógrafo. Eles estavam na sala de estar da Casa da Reconciliação, em São Paulo, um lugar pertencente à Igreja Católica aberto ao diálogo inter-religioso. Dito assim, de maneira mais formal, parece algo burocrático. Quem conhece o lugar e os vê juntos, brincando uns com os outros, descobre o que é na prática o significado do respeito à crença alheia e, principalmente, que é possível conviver com o diferente. Afinal, apesar das distinções entre as religiões, todos eles desejam a mesma coisa: “tikun olam”, a expressão judaica que significa trabalhar para melhorar o mundo e torná-lo mais harmonioso. “Esta é a lição mais importante do nosso trabalho”, afirma Bizon.
Além dos católicos, judeus e muçulmanos, participam das atividades representantes de outras religiões de origem cristã, como os mórmons e os luteranos, de raízes africanas, como a umbanda e a ioruba, e também do budismo. O objetivo é divulgar às pessoas que o amor ao próximo é o denominador comum às religiões e não o contrário. “O desconhecimento das pessoas em relação às religiões é o grande problema”, diz Raul Meyer, diretor da Federação Israelita de São Paulo na área do Diálogo Inter-religioso. “Há a formação de uma minoria que radicaliza enquanto a maioria silencia.”
Combate aos ataques
Um jantar de diálogo inter-religioso na sede do Centro Cultural Brasil-Turquia
O mundo, de fato, está repleto de um ódio religioso que grita nas redes sociais e que, de tempos em tempos, produz tragédias em nome de Deus. A última aconteceu na sexta-feira 15, na Nova Zelândia, quando um atirador matou 50 pessoas em duas mesquitas na cidade de Christchurch. O sentimento de raiva está calcado em falta de informação e em estereótipos sem sentido, como o de que muçulmanos são terroristas. Nada está tão longe da religião, fundamentada na prática do amor e na valorização da vida. “Quando alguém de nossa religião mata, ele perde sua essência de muçulmano porque, para nós, ser muçulmano significa respeitar a vida”, explica o turco Atilla Kus, secretário-geral do Centro Islâmico e de Diálogo Inter-religioso e Intercultural.
Até há alguns anos, o Brasil parecia estar distante das ondas de ódio religioso. No entanto, o fenômeno ganha terreno aqui e tem como alvo principal as religiões de matriz africana. Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos humanos, entre 2011 e 2016 as denúncias de intolerância religiosa cresceram 4.960% no País. A maioria dos ataques (178) foi contra integrantes de crenças de raiz africana. Às vezes, a impressão é que se trata de uma guerra na qual só o lado da raiva é vitorioso. Mas trabalhos como os da Casa da Reconciliação evidenciam que há uma contrapartida forte transmitindo a mensagem da convivência pacífica. “Somos todos filhos de Deus que podem se unir em favor do amor e não do ódio”, diz Ruth de Andrade, da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. E conviver significa respeitar as diferenças de práticas. “Quando me encontro com a mãe de santo, peço a sua benção”, conta a monja Heishin, praticante do zen-budismo.
Todos os meses, eles reúnem as famílias em um almoço para o qual cada um leva pratos comuns às suas origens. No início, há cerca de dois anos, havia certo estranhamento entre judeus e muçulmanos. Hoje, homens, mulheres e crianças interagem como amigos, demonstrando que nenhuma distinção religiosa torna um ser humano diferente ou melhor do que o outro. As mulheres, inclusive, preparam um livro com receitas de refeições partilhadas nos encontros. Praticantes de outra fé já participaram do Ramadã, período no qual os muçulmanos jejuam de dia e alimentam-se depois do por do sol. Eles são convidados pela comunidade, que tem o cuidado, inclusive, de incluir no cardápio a comida kosher consumida pelos judeus. É com gestos assim que o ódio religioso será combatido. Ou com atitudes como a da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern. Um dia após os ataques, ela foi até os familiares das vítimas. Cobrindo a cabeça com um lenço preto disposto como o hijab das muçulmanas, ela não falou nada. Apenas abraçou os que sofriam, levando a eles, em cada abraço, a solidariedade do mundo todo.
Um dia após os ataques na Nova Zelândia, a primeira-ministra Jacinda levou sua solidariedade às vítimas (Crédito:Hagen Hopkins)
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